Friday 5 May 2006

Eva

Em 1912 nasceu Eva Marie Gabriela von Kalckstein, na Prússia Oriental, perto de Königsberg. A família von Kalckstein fazia parte da “casta intocável” da nobreza prussiana, e assim o era já desde o século XII, altura do registo mais antigo que mencionava o nome.
Entre os seus representantes mais ilustres, contavam-se um grão-mestre da Ordem da Cruz de Malta, o educador do imperador Frederico o Grande e dois irmão com a história pitoresca de um ter cortado a cabeça ao outro. Todos os von Kalckstein tinham sido cavaleiros da “Ordem Alemã”, originalmente uma organização comparável aos Cruzados, com a diferença de se concentrar não na Terra Santa, mas sim no nordeste europeu. E com a particularidade de se ter convertido ao luteranismo, mais tarde.
Seja como for, Eva nasceu no seio desta família, como a filha mais nova de quatro raparigas. A sua mãe morreu pouco tempo depois da sua nascença, tendo o pai casado de novo, mas, ao contrário das histórias, a madrasta de Eva não era má, bem pelo contrário.
A infância era, essa sim, tirada das histórias: não lhe faltava nada. Andava a cavalo (coisa que adorava, e que iria fazer até quase aos oitenta anos), trepava às árvores (o que lhe deixou várias mazelas, ainda marcadas na pele muitos anos depois), brincava pela propriedade toda (o que era bastante: a família von Kalckstein era dona de um solar inserido numa propriedade vasta) e a escola era em casa: as famílias ricas não mandavam as crianças à escola.
Eva era uma maria-rapaz, o que fez com que, como é costume nas marias-rapaz, tivesse uma fila de rapazes atrás dela.
Como muitas raparigas nos “loucos anos 20”, e para grande insatisfação do seu pai, às tantas começou a fumar. Para ainda maior insatisfação dele, cachimbo!
Por volta da mesma altura, conheceu o seu futuro marido: Hans Otto Ulrich Welter era neto do grão-burgomestre de Colónia, e tinha uns tios, também abastados, na Prússia Oriental, não muito longe do poiso dos von Kalckstein, onde passava as férias. Ulrich era suposto herdar essa fortuna (o que nunca aconteceu, devido à Segunda Guerra Mundial) , sendo o único sobrinho, e tendo em conta que os Gramatzki (o nome dos tios dele) não tinham filhos.
Casaram em 1932, ano em que a NSDAP chegou ao poder. Chegada ao poder essa, que, como na maioria da população abastada e não-judia, não foi considerada uma das piores coisas que poderiam acontecer, mesmo tendo em conta que não partilhavam as opiniões de Hitler, bem pelo contrário. Na Prússia Oriental era-se, tradicionalmente, monárquica e votava-se sempre na União dos Democratas Cristãos.
Em 1939, nasce a primeira filha do casal, Katrin, e em 1943, a segunda, Barbara Christine Helene.
Por esta altura, Hans Otto Ulrich tinha sido, já bem trintão e num último exercício de desespero, incorporado no exército alemão, e, para cúmulo dos cúmulos, enviado para a frente leste. Safou-se a Estalinegrado, mas não se safou a uma granada. Por sorte, só ficou com um estilhaço na perna esquerda: foi o suficiente para ser enviado de volta para a Alemanha, mais precisamente para um hospital militar em Hamburgo. Até ao fim da sua vida iria coxear, muito ligeiramente.
Mais ou menos pela mesma altura, Eva decide fugir em direcção ao oeste da Alemanha: os russos estavam em pleno avanço e iriam, já se sabia, entrar pela Prússia a qualquer momento. O seu pai e a sua madrasta decidiram ficar para trás: os dois filhos adoptivos já tinham morrido (ambos na frente leste) já eram velhos e iriam morrer na terra a que pertenciam – mais tarde soube-se que os russos, na fúria de vingança, não só acelerariam essa morte, como iriam destruir tudo à superfície dessa mesma terra.
Assim, Eva pegou nas suas duas filhas, uma com 5 e outra com 1 ano e fez-se a caminho. Escondidas onde era possível,cosido às roupas, levava pratas. Algumas para tentar salvar, outras para pagar o que fosse preciso, pelo caminho.
Comboios, já não havia; só para transporte de tropas, que mais não eram do que miudos de 14, 15, 16 anos, cegos pela propaganda e com a morte marcada para pouco depois.
Um dos transportes foi num camião militar (o que era proibidíssimo). O condutor teve pena das três e disse-lhe para se esconder debaixo da lona, juntamente com a carga: granadas.
Já na Alemanha ocidental, e após ter visitado o marido em Hamburgo, a sua filha mais nova adoeceu. “Ruhr”, disse o médico. Era uma doença muito comum no pós-guerra alemão – o nome vinha da região industrial do Ruhr, onde ela tinha aparecido mais insistentemente. Christine, num dos seus últimos dias de vida, já sem capacidade de andar, pediu à mãe que a levasse a passear, coisa que esta fez, pegando-lhe (facilmente) ao colo. A meio do passeio, já sem forças para sequer falar, a filha apontou para umas groselhas à beira do caminho. Eva deu-lhas, apesar de o médico ter desaconselhado a ingestão de fruta – o estômago já não digeria. Devido a esta refeição não planeada, veio-se a descobrir, um pouco mais tarde, que era precisamente a ingestão do ácido contido nas groselhas que curava a Ruhr – Christine escapou, quando a morte já dobrava a esquina uns cem metros mais à frente.
Os episódio seguintes da vida de Eva, resumem-se ao que aconteceu a milhares de alemães: a lenta reconstrução de uma vida, o milagre económico alemão dos anos 60. Pelo meio, ainda nasceu a terceira filha do casal, Gisela. Até aos seus 80 anos, Eva montaria a cavalo, sempre que possível diariamente, apesar de ter osteoporose e uma forte calcificação das artérias, que, ao mínimo toque, abriam.
Aos 75 anos fez a sua última caça à raposa (que, na Alemanha, não se faz como em Inglaterra. A origem é a mesma (daí o nome), mas a diferença reside no facto de se atar um pano vermelho à cauda de um cavalo, cujo cavaleiro depois tem de tentar fugir aos outros. Ganha quem ficar com a fita).
Em 1999 morreu Ulrich. Tinha feito uma carreira na gestão de propriedades agrícolas. As suas últimas palavras foram de elogio a um tipo de batata que ele muito apreciava, e que cultivava num pequeno terreno que comprara.
Eva Maria Gabriela Welter, nascida von Kalckstein, morreu ontem, às 15.30. Para além de tudo mais, era uma jogadora de cartas miserável, e uma igualmente miserável batoteira; das coisas mais divertidas que eu fazia na férias na Alemanha, era jogar crapot com ela, ao fim do dia. Era bestialmente engraçado vê-la abrir os olhos e fazer uma expressão de espanto ao negar ter sido apanhada mais uma vez a fazer batota. Tinha a lata de, enquanto se discutia se teria feito batota ou não, tentar faze-la de novo.
À terceira, foi de vez: fez batota durante a Segunda Guerra Mundial, fez batota com a minha mãe e uns bagos de groselhas, mas ontem, já não conseguiu.

15 Comments:

At 5/5/06 20:25, Anonymous Anonymous said...

É sempre uma questão de quando, nunca de se...

Abraço

Ricardo

 
At 6/5/06 17:44, Blogger just me said...

Um beijo!

 
At 6/5/06 19:09, Blogger Senador said...

Lamento a sua morte e perante a tua descrição apraz-me saber que teve a oprtunidade e instinto de ter tido uma vida cheia!

Abraço

 
At 6/5/06 21:44, Blogger pinky said...

grande senhora, a tua avó! viveu uma vida intensa e aventureira.
as saudades ficam, mas esses momentos inesquecíveis que viveste com ela ninguém te os tira e ficam para sempre contigo.
ela vive para sempre contigo e em ti.
um grande beijo

 
At 8/5/06 09:25, Blogger B-Good said...

E pronto. É assim que se começa a semana comovida e triste pela notícia. Sei que te estás a sentir de rastos, gostava de te dar a mão... acredita que a memória que guardas dela vai ser um conforto para toda a vida. Beijinhos para ti

 
At 8/5/06 22:59, Blogger bonifaceo said...

Sinto muito.
Um abraço.

 
At 9/5/06 00:42, Blogger S. said...

Beijinho, David.

 
At 9/5/06 11:07, Blogger asterisco said...

Meus AMIGOS:
Muito obrigado pelos vossos comentários.
Não tenho grande vontade de fazer muita coisa, mas não podia deixar de vos agradecer.
A verdade, é que já estavamos à espera de que isto acontecesse, mas acabou por ser mais forte do que eu pensava - talvez por eu ainda ter esperanças de a ver mais uma (última) vez daqui a menos de um mês - ainda há uma semana, a minha avó achava que se aguentava até lá. Não foi assim, manifestamente.
Talvez, também, porque sempre tive uma relação especial com ela, apesar de a ver muito poucas vezes, evidentemente.
Seja como for, muito, muito obrigado pelas vossas mensagens: nenhuma se destaca, mas nenhuma chega aos calcanhares da outra. movem-se num permanente círculo vicioso.
Muito obrigado.

 
At 10/5/06 17:20, Blogger Lisa said...

Bonita memória de uma grande Senhora. Sinto muito, dói sempre, mas ficam as boas lembranças.
Um beijinho e um abraço.

 
At 11/5/06 19:00, Blogger asterisco said...

Lisa:
Também para ti, vale o meu comentário mais acima. Muito obrigado.

 
At 12/5/06 18:04, Blogger nana said...

desculpa não ter comentado antes mas não sabia que dizer-te!
Notam-se as saudades já no teu textinho!
Espero que Eva viva na memória dos seus sempre, sempre!!
;)

 
At 15/5/06 09:18, Blogger asterisco said...

Nana:
Estás desculpadíssima: muito obrigado pelo comentário; a mim, nestas situações, também me faltam as palavras.

 
At 16/5/06 20:54, Blogger Mar e Serra said...

Sei te dar o valor pela perda da tua avö.Quando perdi a minha avö, foi uma grande dor.Era a minha segunda mäe.
muitos beijinhos

 
At 16/5/06 21:50, Blogger asterisco said...

mar e serra:
A minha avó, segunda mãe não era, até por causa da distância. Mas havia ali uma coisa especial.

 
At 2/3/07 09:17, Anonymous Anonymous said...

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