Monday, 30 January 2006

Fulano, Taldogostinhoespecial, Aquela e Coiso


Claro que tinha havido um erro: não era suposto Maki Hauitanen estar aqui. Era suposto ter voltado para a Terra, ter-se encharcado em cerveja e vodka, e ter desaparecido, como todo o resto, no Domingo.
- Então, ainda aí estás?
Maki Hauitanen, já conformado ao silêncio, deu um salto. Se é que se pode dar um salto quando há Nada debaixo dos pés.
- Eh, lécas! Quem és tu?
- Oh, trata-me por Fulano. Os nomes tornam-se complicados, por estes lados.
- Bem, Fulano, não é que exista algum lugar onde eu possa ir. Já andei por aí, mas não me parecia que saísse do sítio. Para além do mais, isto é estranho; consigo ver-me perfeitamente, mas, efectivamente, isto está tudo escuro.
- Escuro não está. Não há é luz. Onde não há luz, também não há escuridão, por isso é que te consegues ver.
- Hm. Não sou o tipo mais inteligente do mundo - quer dizer, agora até devo ser, se existisse o mundo - mas eu conseguiria inverter essa lógica...
- Não interessa. Aqui só conta o que nós dizemos. E para nós, é assim.
- Como, para vocês? Eu tinha ficado com a impressão de que vocês, quem quer que sejam, só sabiam dos que estavam abaixo de cada um. "Aquele" não sabia "Dele" e "Ele" não sabia de "Aqueloutro"...
- Bom, isso, cá entre nós, era porque "Aquele" era burro. Só acreditava vendo, mas recusava-se a abrir os olhos. Ele chamava-lhe uma "filosofia de vida". E "Ele" sabia de todos nós, mas achava que devia existir, também, "Aqueloutro". Enganou-se. De resto, claro que cada um de nós sabe do outro. Senão, como é que jogavamos Canasta?
- Mas então, quantos é que vocês são?
- Oh, pelas últimas estimativas, uns 375 mil milhões. Tira coisa, põe coisa. Cabem montes de nós em Nada.
Maki Hauitanen não conteve um assobio de admiração: - Eh, caraças. Tantos! Então eram muitos mais do que havia pessoas na Terra!
- Por isso é que os outros me pediram para falar contigo; é que, neste momento, tu és único no Nada; não há mais rigorosamente ninguém como tu. Não sabemos o que fazer.
- Bem, podem sempre fazer comigo o mesmo que "Ele" fez com o meu mundo. É que isto assim, é um pouco chato: não há cervejas, não há gajas, não há PlayStations (até podia ser a PSone, que já me servia), não há ruas, não há NADA. Caramba, até me contentava com trabalho! Nem sequer há nada com que um tipo se possa suicidar, caraças!
- Nós compreendemos o teu problema. "Ele" sempre foi um pouco intempestivo. Devia ter-te mandado para a Terra antes de acabar com "Aquele". Mas agora, está feito. O problema, é este: "Aquele", mesmo sendo um pouco a atirar para o burro, foi o único de nós todos que conseguiu levar uma experiência a avante. Possivelmente, porque tinha um objectivo em mente. Portanto, tu és o que resta da experiência, e nós temos de te preservar. De certo modo, tu és mais precioso do que qualquer um de nós.
- Ah, pois. Que janota. Mas quem consegue jogar às cartas são vocês, não é? Quer dizer, se ao menos um tipo conseguisse interagir convosco, ainda vá lá que não vá. Agora isto de vocês só serem vozes...
- Claro que não somo só vozes. Só que tu não nos conseguer ver. Na verdade, somos o que na Terra se chamaria de muito, muito, muito pequenininhos. Tu não conseguias ver-nos, nem com um microscópio electrónico. Muito menos, segurar as nossas cartas.
- Pequeninos?! Então e as vozes trovejantes?
- Boa projecção de voz. É tudo uma questão de treino.
- Então vocês são capazes de criar mundos, e são minúsculos?
- Bem, só o mundo de "Aquele" era grande. Nós fazemos mundos muito pequenininhos. Por isso é que o dele funcionou - às tantas era grande demais para nós podermos interferir. É que nós, francamente, quando interferimos demais, só fazemos disparates.
- Ah, pois. Também já votei nesses... Mas então, onde é que tu estás?
- Bem, no Nada, "onde" é muito relativo, mas pode-se dizer que estou à tua frente.
- Então e os outros?
- Andam por aí. É a melhor definição que consigo arranjar. Aliás, tudo "anda por aí", quando se está no Nada.
- Então não há um mundo para o qual eu possa ir?
- É tudo muito pequenino. O único que os sabia fazer grandes era "Aquele". E "Ele" acabou com ele.
- Mas vocês acabam uns com os outros assim, por dá-cá-aquela-palha?
- Oh, sim. Quando um de nós diz que não acredita no outro, este acaba com ele. É uma tradição.
Claro que acontecem erros; quando, durante um jogo de Poker, o "Taldogostinhoespecial", em vez de dizer que não acreditava que eu tinha dois pares, disse só que não acreditava em mim... enfim, estas coisas acontecem...
- Então, e se eu disser que não acredito em ti?
- É um problema interessante. Por um lado, teria de acabar contigo, mas por outro lado tenho ordens para não o fazer. Curioso.
- A não ser que eu te diga que não acredito em ti, e tu acabes comigo. Mas para isso, tinhas de dizer que não acreditavas nos outros. Se não acreditares na existência dos outros, as ordens deles também não existem, e pronto. Portanto, e tendo em conta que não tenho vontade nenhuma de ter uma existência na qual estou condenado a brincar só comigo, por muito aliciante que isso possa ser no início, digo-te: não te vejo, não acredito que tenhas corpo, e, como tal, vou partir do princípio que estou a ter um ataque de delirium tremens. Não acredito em ti.
- Bom, nesse caso, e para cumprir a tradição, tenho de aceitar que não acredito naquela malta. Não acredito neles. Pronto. E agora, tenho de acabar cont...
Repentinamente, voltou a abater-se o silêncio sobre Mika Hauitanen e o seu nada.
- Então? O que é que se passa?
- Oh, nada. Tive de acabar com "Fulano", que ele disse que não acreditava em mim.
- Mas quem diabo és tu?
- Eu sou "Aquela".
- "Aquela"? Mas "Fulano" disse "aquela malta"! E tu és uma mulher?
- Ah, disse? Chatice. Percebi mal. Estas coisas acontecem... E não, não sou uma mulher. Nós não temos género...
- Chatice, hã?
- ...mas adoptamos nomes de ambos os sexos. É para não repetir tanto.
- Olha, para cortar isto pela raíz, deixa-me já dizer-te que não acredito que tu existas. Tal como os outros, és um produto da minha imaginação.
...
- Então? Não acontece nada? Eeeeeh! Está aí alguém?! Olááááá-ááááá!!!!
- Maki Hauitanen, és um atrasado mental.
- Ah, bom. E quem és tu? E porque é que eu ainda existo? O que é que se passou?
- Eu sou o "Coiso". E tu existes, porque és um atrasado mental. Ao dizeres que éramos todos um produto da tua imaginação, obrigaste-nos a todos a tentar acabar contigo. Como isso era contrário às ordens, tivemos de negar, primeiro, a existência uns dos outros. O resultado, é que já só sobro eu. És um perfeito atrasado mental.
- Por mim, pá, quero lá saber. Repito: não passas de um produto da minha imaginação. Pronto, acaba comigo.
- Não. Decidi que a tradição tem de ser quebrada. Claro que foi preciso já só sobrar eu para chegar a esta conclusão, mas mais vale tarde do que nunca. Ainda por cima, já não tenho parceiros para as cartas e não gosto de paciências. Preciso de ti para passar o tempo.
- Deves estar a brincar! Vou passar o resto da minha vida a falar com um micróbio com projecção de voz?!
- Oh, não. O resto da tua vida, não. No Nada não existe tempo. Não existe mesmo nada. Ou existe Nada, é uma questão de retórica. A tua existência não tem fim. Nós vamos ser amigos para todo o sempre. Então, o que achaste do tempo de ontem?
- Ora foda-se.

4 Comments:

At 31/1/06 12:03, Blogger 1entre1000's said...

è aqui que faço a inscrição para o campeonato de Sueca no mundo do nada? queria uma ficha para preencher por favor!!

 
At 31/1/06 15:45, Blogger asterisco said...

1entre1000's:
Olha que eles são uns batoteiros de primeira apanha!

Pinguina:
Ainda bem que gostaste.
Falta de fé, mesmo.

Balzakiana:
Infelizmente, o fim-de-semana foi passado a trabalhar, o que quer dizer que não tive a fortuna de ir a casa comer.

 
At 31/1/06 16:01, Anonymous Anonymous said...

Numa palavra: "cum caneco" "Caredo", Dei duas voltas ao cérebro, acho que vou pedir o resto da tarde!
Bem trabalhado! :))

 
At 31/1/06 16:40, Blogger asterisco said...

Míscaro:
Se deu para justificar uma folga para ti, por mim já valeu a pena.

 

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