Thursday, 29 November 2007

Araújo


Quem vem do Campo Pequeno pela Defensores de Chaves fora, encontrará, do lado direito e um pouco antes de chegar à António José de Almeida, o Araújo.
O Araújo veio, em tempos, da Serra da Gardunha; há que tempos, nem sei: na minha família, atravessou três gerações de barbas e cabelos. O meu avô ia lá, desde que se mudara para a Visconde de Valmôr, há mais de 60 anos. Pouco depois, foi o meu pai, levado pela mão para cortar o cabelo, e eu passei a ir ao Araújo porque era tão óbvio como um mais um serem dois.
O Araújo falava como um carroceiro e conseguia reduzir tudo a um monte de escombros verbal; poucas foram as vezes o ouvi elogiar algo, e mesmo quando o fazia, interjeitava um "cabrão" qualquer, não fosse o diabo tecê-las. E, apesar de viver há que tempos em Lisboa, nunca perdeu o seu sotaque beirão, que lhe dava a graça aos "S" - "Eches filhoch duma puta, é chó o que lhe digo!".
Ir ao Araújo, e fazer a barba à navalha, era um dos prazeres semanais (mais não dava, que a carteira não deixava). Eram três a trabalhar no Araújo, mas a antiquidade genética dava-me o privilégio de poder deixar outros passar à minha frente, se o Araújo estivesse ocupado. "Atenda eche chenhor aí, que eche é meu" - já toda a gente sabia, mas o Araújo lembrava-os à mesma.
Eu já só conheci o Araújo com as mãos a tremer. Nunca deu um golpezinho que fosse. Aproximava a navalha, de mão tremeliquenta, mas quando tocava na pele, era trigo limpo, farinha Amparo.
O cabelo era cortado curto, "dá menoch trabalho e até pareche maich!", e, coisa que nunca comprovei, jurava que lavando o cabelo com sabão azul, ele durava até ao fim da vida. De facto, o Araújo tinha bom cabelo.
O Araújo era o primeiro a chegar à barbearia e o último a deixá-la e só tratava por "tu" as crianças. Até o António, que lá trabalhava há tanto tempo como ele (tira coisa, põe coisa), era "você". Eu era um "você", bem como o meu pai, mas o meu avô já era um senhor. Começou a lá ir adulto, era senhor. Quem entrava "tu", passava, a seu tempo, a "você", mas não a senhor: era da casa.
Agora é o genro do Araújo que está à frente da barbearia Araújo. O nome mantém-se, foi um pouco arranjada e, na parede do fundo, estão fotografias do Araújo a cortar, sorridente, o cabelo da vários "tus". Só o Araújo cortava o cabelo da crianças. Ele gostava, e tinha sempre conversa para eles. Se descobria que eram de outro que não do seu Sporting, fingia um susto e já ser ter enganado e que, pronto, lá se ia ter de remediar rapando o cabelo todo.
O Araújo morreu (sim, porque o Araújo era, definitivamente, uma pessoa que não "falecia") num Domingo. Tinha ido no seu velhinho Ford Taunus ver como é que estava a barbearia, como o fazia todos os Domingos. Há muitos anos que já só guiava o carro ao fim-de-semana, que durante a semana era uma chatice. Na volta para casa, morreu.
Não sei que idade tinha, mas devia ter mais de noventa. Nunca chegou a ir descansar para a sua terra, como sempre disse que um dia haveria de fazer, tendo, inclusivé, rompido com um contrato de trespasse da barbearia, já nos seus oitentas. Lá devolveu o sinal, a dobrar.
O Araújo foi cremado, e as suas cinzas foram espalhadas, tal como ele quis, na sua "Cherra da Gardunha". Eu ainda vou ao Araújo, mas já não é a mesma coisa. Ainda me fazem a barba à navalha, mas já não tenho o privilégio de poder esperar mais tempo do que os outros. Faço a barba com qualquer um dos que lá estão: o genro, que está finalmente à frente da barbearia, ou um dos dois empregados dele (o António, que ainda lá está (não sei se como sócio), não a faz tão bem - às vezes, arranha).
Quando olho para a parede do fundo, onde, entre as fotografias, também está um quandro com dedicatórias para o Araújo, sinto falta dele.
Icho não che fach. Chaiu-me um belíchimo cabrão, Araújo.

3 Comments:

At 29/11/07 19:23, Blogger gajo dos abraços said...

Muito catita, chim chenhôr.

 
At 30/11/07 11:21, Blogger 1entre1000's said...

:)... eina, obrigada!
é um privilégio ler-te assim... ja fazia falta!
O araujo tb de certo haveria de gostar de ler... ainda que reclamasse qq um ou outro ponto...

 
At 30/11/07 15:13, Blogger asterisco said...

Gajo dos abrachos:
Catita? O Araújo que te oiça chamares-lhe catita, que te dizia das boas!!!

1entre1000's:
O post andou aqui a marinar uma data de tempo. Mas acabou por, admitidamente, absorver bem o molho. Não consegui chegar a tempo de participar no quadro das dedicatórias, portanto fica assim; o Araújo há-de perdoar.

 

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