Os Silvas - A vida continua
A notícia caiu que nem uma bomba para os lados da Picheleira e freguesias adjacentes: após 18 anos de dedicados serviços, o Sr. Silva vendeu o seu bólide calçado de Mabores. O comprador foi o "Chpício", irmão mais novo do Fanã, que nada mais queria do que seguir na peugada do irmão, sobretudo depois de o Fanã ter escaqueirado o Civic contra uma cabine das portagens da ponte Vasco da Gama - "é a minha oportunidade, caralho!", confessou o "Chpício" à "chavala" do momento, a Linda (só de nome). O "Chpício" ganhou a alcunha daquela vez que fez a 2ª círcular em cavalinho com a sua Casal Boss, com o "Bitaites" à pendura, vindo do Benfica-Moreirense. O agente da BT, que o parou por alturas do aeroporto enviou uma mensagem para o posto de comando, a dizer que "temos aqui um para o hospício.", e o "Bitaites" não se fez rogado em divulgar.
O "Chpício" compete neste momento na 2ª divisão do Campeonato Regional dos Malucos do Volante, sob o petit nom de "Chpício - o Terror da Ponte do Trancão". Basicamente, não se o pode deixar sair à frente no arranque, porque senão os pneus vão à viola à custa das peças que o AX semeia pela estrada. A ideia é fazer as pontes menores, para depois se apresentar em glória na Vasco da Gama.
Seja como for, e voltando atrás, o mal estava feito: o Sr. Silva vendeu o AX - agora é o orgulhoso dono de um Opel Kadett de 1997, vermelho metalizado, matrícula 45-38-HX (fica feito o aviso). O José Leonardo ao ver o bólide pela primeira vez, ainda exclamou "Haxixe! Que fixe!", o que lhe valeu uma bélinha e o reparo "O qu'é que tu sabes disso, meu ganda maladro?! Toca mazé a andar daqui!".
Chega o Sábado e o dia da primeira excursão familiar no novo coche, graças ao facto de o Sr. Silva ter recebido mais cedo, por causa do fim-de-semana. Ainda por cima, o automóvel já está apetrechado com os essenciais para um empreendimento da envergadura: o São Cristovão já está colado no tablier (ao lado da fotografia da esposa - "Assim é que não me gamam a viatura de certeza, cum caneco"), o rosário pendurado do retrovisor, e o canito-que-abana-com-a-cabeça colocado na traseira, em cima do resguardo em ponto-de-cruz, feito à medida pela Sra. Etelvina.
Após ter instado todos a tomarem os seus lugares no carro (o Zé Francisco levou dois calduços em corrida, o Zé Leonardo um pontapé no rabo, a Sra. Etelvina foi aconselhada a "mexer essas banhas" e a Sra. Dona Felismina, dilecta sogra, foi ameaçada com a subtracção da dentadura durante três dias), o Sr. Silva dá à ignição, simultaneamente espremendo o acelerador até ao fundo. Isto origina uma barragem de décibeis comparável ao arranque do AX, o que despoleta uma lágrima ao canto do olho do Sr. Silva, prontamente disfarçada com uma exclamação sobre "a merda da mosca" - termo brindado com um olhar de desaprovação pela esposa, "por causa dos miúdos".
Já na subida a caminho da rotunda das Olaias, a família Silva vai-se preparando mentalmente, não sem alguma mostra de nervoso-miúdo, para o destino final, semelhante a tantas outras milhares de famílias lusas, cientes do seu tempo-livre: o Continente.
Após 45 minutos na fila de acesso ao parque de estacionamento do Éden em Terra, interrompidos pelo Sr. Silva a queixar-se que ninguém trabalha neste país (sendo que o Zé Leonardo repara que "Ó pai, mas hoje é Sábado, ninguém trabalha!" - "Tu de certeza que não, meu madrião!! Bons tempo, quando a tropa era obrigatória, que faziam de ti um hom... Ó meu granda camelo! Essa carta, foi tirada na farinha Amparo, ou quê? Tira-me lá a porcaria do AX da frente, senão passo-te a ferro, ó palhaço!"), lá se acede ao piso -1, tendo o Sr. Silva sido o responsável por um acréscimo na fila atrás de si em mais 100 a 120 carros, devido ao facto de ter ficado à espera que o segurança tirasse o sinal que o redireccionava para o piso -2.
Uma vez no parque, o Kadett é guiado direitinho à zona de acesso ao Shopping, e parado mesmo à beirinha, à espera que vague um lugar. Passados 20 minutos, lá aparece um senhor de idade, de bengala, que se dirige para o seu automóvel, estacionado num lugar para deficientes.
Como tudo aquilo já não se processa à velocidade de tempos idos, o Sr. Silva incentiva-o através de buzinadelas, sinais de luz e a comparação, a todos os títulos brilhante (segundo o autor), de que "até eu com entupimento arreio o calhau mais depressa do que você tira daí o chaço".
Um arranque suportado por pneus a chiar, uma travagem com igual fundo sonoro e uma família descarregada depois, o Sr. Silva está envolto em luzes consumistas, a ser bafejado pelo ar condicionado e a ocupar toda a largura do tapete rolante. O bólide ficou semi-atravessado no lugar para deficientes, com a justificação de que "'tou rodeado de atrasados mentais e uma velha a cair da tripeça, posso pôr aqui".
Uma vez no templo, as funções já estão bem estudadas; o Sr. Silva e a esposa vão carregando o carrinho até à explosão, o José Leonardo vai experimentar os jogos da Playstation (pelo meio consegue gamar um DVD - "Nikki Jugs does Stratford-upon-Avon" - graças ao dispositivo que o Leandro Cigano lhe arranjou, para desarmar o alarme) e o José Francisco vai ver os novos acessórios dos Action Mans, meio à socapa, que o pai não aprova "das bonecas do puto. Ai se a tropa ainda fosse obrigatória!". A sogra fica incumbida de empurrar o carrinho, o que no início até a ajuda, por causa das varizes nas pernas, mas, com o acrescer de compras, se torna uma tarefa hercúlea.
Apesar de não abdicar de comprar o alicate de pinças mais caro do expositor, o Sr. Silva não se escusa de comentar que a esposa é uma gastadora, porque os tampões Modelo/Continente são muito mais baratos do que "aqueles todos esquisitos, com aplicador", ao que a Sra. Etelvina riposta que se ele quiser, pode ser ele a lhe aplicar os simples, o que tem o condão de o calar, por impossível que pareça.
Quatro horas após a franquia dos portões do céu das compras, a família Silva está de novo reunida: o Zé Francisco consegue enfiar o escafandro do Action Man entre os legumes, o José Leonardo tem um caminhar muito direito, como se tivesse uma tábua nas costas, o Sr. Silva já mais apaziguado depois de ter conseguido levar 2 grades de minis sem a esposa protestar demasiado (na altura estava a remexer a pilha de bacalhau da Noruega graúdo, à procura da posta melhor), e a Sra. Felismina a arfar atrás do carrinho de compras, cuja conteúdo roça nos cartazes pendurados do tecto.
O Sr. Silva, que de parvo não tem nada (de novo, na opinião do próprio), encaminha-se para a caixa mais vazia - a das compras até 10 unidades, claro está - e começa a distribuir as compras à dezena pela família. O truque, é cada um pagar 10, entrar de novo, e pagar outros dez. Pelo meio, e em sinal de extremo civismo, o Sr. Silva até deixa passar uma grávida - "sem aliança, a ordinária", comentará ele mais tarde com a esposa, sem lhe confidenciar, no entanto, os seus pensamentos mais íntimos, que envolviam a dita senhora e a possibilidade de ela não estar de esperanças.
Já visivelmente bem disposto à conta da sua esperteza ("olha-me os tansos todos na bicha!"), o Sr. Silva comanda todos de volta para o carro, especialmente o José Francisco, cuja marosca do escafandro foi descoberta na altura da conferência da factura: "Olha-me o sacana do puto mais as suas bonecas! Qu' é isto? Um escafandro? 15 Órios para o puto me brincar com bonecas?!" - novo calduço na nuca, seguido de pontapé no rabo - "A andar, qu'a gente quando chegar a casa já fala! 'tou feito com o raio do puto.".
Já tudo instalado no recém-adquirido bólide, a sogra com duas grades de minis ao colo - "Veja lá, não me mame isso tudo!" seguido de gargalhadas alarves - o Sr. Silva arranca na ganga em direcção à Picheleira, de volta ao ninho familiar, que dá a bola às 19.45. Tendo em conta o estado do veículo, não é bem na ganga, é mais terilene com fecho éclair, mas enfim: o mais depressinha que um Kadett 1.2 consegue andar com 340 Kilos de peso a mais. A rotunda do Areeiro é feita com tanta verve, que uma das grades tomba, despejando as minis pelas traseiras do carro, o que origina umas chapadas dadas ao calhas para trás, que alguém há de ter culpa.
Chegados a casa - nenhuma das garrafas se partiu, por sorte "senão é que corria os putos todos ao pontapé, qu'aquilo é ouro, caraças!", chegou a altura de o Sr. Silva se instalar na sua poltrona, que a bola vai começar. A Sra. Etelvina traz-lhe uma mini, o que é recompensado com uma palmada no traseiro seguido das palavras: "Ainda serves para alguma coisa", o que, curiosamente, é entendido como um elogio por ambos. Três minis, dois golos e quatro cartões amarelos depois, o Sr. Silva adormece, não sem antes pensar que tinham sido uma compras bestiais, que já só havia duas minis no frigorífico.
Amanhã vai-se ver as lojas, que o Continente está fechado.
25 Comments:
«Qu' é isto? Um escafandro?» e «Veja lá, não me mame isso tudo!» é do melhor que tenho lido, pá. E tudo o que tá à volta, claro. Só não percebi uma coisa: ele ia de fato-treino e sapatos de pala?
asterisco valeu a pena a demora!!
que bela tarde de Domingo!!
só uma coisinha:o rosário é uma hipérbole, não?
;)
vou repor o textinho da Dona Rosa!!que de certeza que conhece os teus silvas!!
;)
Innocent Bystander:
Por acaso, não idealizei assim. Possivelmente não radicalizei o discurso suficientemente...
Nana:
Hipérbole? As coisas de que tu te lembras! Ainda me lembro da Dona Rosa, mas vou aí refrescar a memória.
também não é relevante, mas parece-me apenas possível... Mt bom.
Innocent Bystander:
Estava a vê-lo de t-shirt para o justo, com umas calças azuis (sem serem ganga) e uns sapatos de pala (isso, sim) castanhos. Que tal?
Muito bom. LOL
Então foi isto que estiveste a fazer todo o santo dia?
Já ganhaste.
Valeu a espera! Ó se valeu!!!!
Obrigada por partilhares estes momentos de inspiração com a blogosfera. E obrigado por me fazeres rir numa semana que se adivinha extremamente complicada!
parabéns!
t-shirt de manga curta ou cava? já estou a vê-lo a gamar-me um lugar p estacionar num qq continente...
está quase!
;)
Não dás hipoteses, estou feito! Tenho de voltar amanhã que hoje não tenho olhos para ler isto tudo e os posts da semana passada.
Como sempre, é melhor trazer uma toalha...
Abraço!
O poder de observação é genial e a escolha da Picheleira é 5 estrelas!
AJFF:
Se gostaste, já valeu a pena. Obrigado.
S.:
Todo o santo dia, não. Só tive é oportunidade de escrever mais para o fim - acabou o Verão e os fregueses começam a ficar impacientes...
Just me:
Em relação à semana, já somos dois. Obrigado pelo teu comentário.
Innocent Bystander:
Eu diria que, apesar de tudo, ele não usa mangas à cava (a não ser durante as férias no parque de campismo).
Nana:
Já lá vou, já lá vou.
Run Away Man:
Se isso duplica as tuas visitas, então passo a escrever textos de metro e meio todos os dias.
Senador:
O Sr. Silva só podia viver na Picheleira: foi o avô que comprou a moradia, numa altura em que ainda não havia nada por aqueles lados a não ser hortas.
Balzakiana:
Obrigado por passar por cá, e agradeça lá às "cachopas do escritório" da minha parte, por favor. Ainda não durmo na rua, mas se descobrirem por aqui o tempo que me passo a divertir com isto, cheira-me que não vai demorar muito.
Olha-me este gajo...
Andas-te a esmerar... ;)
The Crow:
Volto a dizer: o teu primeiro texto de ficção também merece um follow up. Bota lá!
Cogumelo:
Muito obrigado, e um grande abraço para ti, também.
obrigada pela visita, asterisco!
entro à 1 e meia, mas à tarde deixo novidades no estaminé!!
;)
chuác
Hilariante... temo que me tenho cruzado com a familia Silva varias vezes por estes caminhos de Portugal... :D
Há sempre um Silva no meio de nós...
;) Estou a ver que manténs essa cabecinha com boas ideias!
Abraço!
Prémio Blogel do Conto.....
Está grande, mas não se consegue parar antes de chegar ao fim..... ;)
Tou a tratar disso mas isto tem andado complicado... :)
Nana:
É sempre um prazer. Fico à espera, então.
1entre1000's:
Ah, pois. Elees andem aí...
Míscaro:
Era suposto os Silvas terem chegado ao fim na praia, mas não dá para resistir. Anteontem lá tive que ir às compras...
Um abraço para ti também.
Patioba:
Ainda bem que assim achaste. Muito obrigado. Assim dá gosto.
The Crow:
Força, que aquilo estava muito bom!
Bzz:
É como já dizia antes: tive que ir às compras no Sábado (olha, outro...), e não resisti a ressuscitar os Silvas. Ainda pensei em fazer outra família, mas optei por ignorar o facto de já ter declarado o "FIM" na praia. Também foi preguiça...
Alex:
Gostei da tua descrição, especialmente os "tiques nervosos e passos miudinhos".
best regards, nice info » »
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