No seguimento do tipo que decidiu suicidar-se pouco antes do meu comboio partir em direcção ao aeroporto:
Caro Amigo.
Não sei se me consegue ouvir, até porque consta que só conseguiram encontrar intacto o lóbulo da orelha esquerda, mas farei aqui uma tentativa, na mesma - quem sabe eu esteja enganado (não seria, nem de perto nem de longe, a primeira vez), e exista mesmo algo depois do ponto final, e me consiga ouvir de onde quer que se encontre.
Eu fui um dos incautos que largaram uma quantia não negligenciável em libras (cerca de 9, para ser mais preciso), porque achavam que a viagem de Londres para o aeroporto se fazia idealmente de comboio. Como eu me enganei!
Mal sabia eu, que o meu Amigo planeava fazer uma dupla pirueta com mortal encarpado (sábia escolha de palavras, dadas as circunstâncias) mesmo frente ao comboio das 9.43h (saída de Victoria, com chegada planeada a Gatwick às 10.20h). Por muito que isso o possa incomodar, tenho de lhe confessar que isso me transtornou um pouco, tendo eu partido às 10.02h de Londres, com o intuito de chegar os tais 37 minutos depois ao aeroporto. Tenho de admitir, que pertencendo eu a uma espécie de classe média, e tente até nas viagens de lazer poupar uns tostões, fui também prejudicado pela minha decisão (longe de mim culpá-lo por tudo, prezado Amigo) de viajar numa companhia daquelas em que até o papel higiénico é cobrado - vulgo
low cost (há quem diga que a musculatura nalgueira nunca mais voltou a ser a mesma - não foi o meu caso, no entanto, que sou razoavelmente previdente), o que implica, consequentemente, alguma inflexibilidade no cumprimento do horário. A sua performance, por muito artística que tenha sido, fez com que esse delicado equilíbrio entre o meu planeamento e a imposição temporal da dita companhia aérea entrasse em descompensação, fazendo-me temer um incumprimento da minha parte, o que seria, manifestamente, pouco aceitável.
Primeiro, porque tenho uma forte suspeita de que, uma vez chegado ao guichet da companhia aérea, o argumento do qual me poderia, legitimamente, socorrer, somente iria originar um encolher de ombros, bem como, necessariamente, mais um débito no meu cartão de crédito. Incomodativo, portanto.
Segundo, porque isso também iria originar um atraso no meu planeamento pessoal, o que, não implicando um castigo financeiro tão pesado, teria consequências nefastas para a minha felicidade, devido a uma disrupção na minha vida pessoal. Bem sei que, por esta altura, o excelso Amigo, tendo juntamente com várias partes do corpo também perdido qualquer sentimento de culpa, não poderá ter uma noção do incómodo que poderia ter gerado, mas posso-lhe garantir que não teria sido de somenos importância.
Aliás, já que estamos a falar de sentimento, tenho, inclusivé, a forte suspeita de que, a sentir algo, o excelentíssimo Amigo apenas terá noção de uma incomodativa sensação de dois agrafes gigantes que se lhe atravessam paralelamente no corpo. Mas adiante.
Serve esta missiva, para cumprir dois objectivos e para lhe sugerir uma recomendação.
O primeiro objectivo, era comunicar-lhe o meu desagrado pela sua decisão. Felizmente o encarregado de manejar os utensílio de limpeza dos carris foi contratado pela sua competência e não, como julgo que também no seu país acontecerá com alguma frequência, pelo facto de ter engravidado a filha adolescente do chefe de estação, e da decorrente necessidade de sustento familiar (a alternativa seria ter sido atirado para o mesmo ponto que o Amigo escolheu, mas com circustâncias atenuantes - mãos atadas, etcetera e tal). Portanto, fica o ponto um tratado.
O ponto dois sob o capítulo "objectivos", era comunicar-lhe que o juri lhe atribuiu 9.8 na nota técnica, e 9.1 na nota artística. A penalização nesta nota, foi devida ao facto de os pés não estarem perfeitamente paralelos na descolagem, bem como ao facto de o meu Amigo ter falhado ligeiramente na aterragem, tendo embatido primeiro no chão, o que causou um certo arrastamento no espalhamento orgânico decorrente. Decerto que tem noção que um embate directo na locomotiva teria tido um efeito estético bem mais apelativo, bem como um impacto sonoro mais incisivo. Um sonoro e seco "SPLOTCH!!!" fica sempre melhor do que um "PAF... CRONTCH!!". Deixe-me assegurar-lhe, no entanto, que o juri teceu comentários muito favoráveis à sua performance, sobretudo tendo em conta que foi executada sem ensaios prévios, tratando-se, portanto, duma primeira vez. Estou seguro, apesar de não ser um entendido na matéria, de que terá amplo espaço para progressão, desde que se confirme a teoria da reincarnação e que lhe seja concedida mais uma hipótese de subsistir como um ser humano minimamente viável, e não como um percebe ou, tragédia das tragédias, um bicho qualquer com instinto de sobrevivência.
Por último, uma recomendação. Pode dar-se o caso (nada raro, por sinal), de o meu amigo não ter tido qualquer intenção de alegrar os espectadores com uma tirada artística tão decisiva. Pode o meu Amigo ter querido, apenas, abandonar a sua existência terrena. Nesse caso, e com a muita estima que nutro por si, e numa tentativa de lhe facilitar a vida a si, bem como aos meus companheiros de viagem e, evidentemente, a mim, que ficamos algo transtornados em termos de coordenação temporal com os nossos objectivos, dediquei algum do meu tempo a desenvolver um utensílio que muito lhe poderá facilitar a vida (ou o término desta, mais especificamente), caso decida repetir a proeza. Penso que seria muito mais elegante fazê-lo sem gerar incómodo para terceiros, bem como mais
cozy (vocês os ingleses, inventam algumas palavras bestiais) proceder à sua auto-execução no conforto dum local mais íntimo. A sua casa, quiçá.
O objecto em questão tem várias vantagens:
primeiro, evita uma desagradável torção do pulso;
segundo alivia um pouco a sensação de auto-inflicção de danos, sempre tão desagradável.
Respeitosos cumprimentos
o sempre seu amigo
*P.S.: Junto remeto uma imagem do utensílio, espero que o possa chegar a apreciar: