Que haja um referendo, até acho bem - acho que até deveria haver mais, mas isso, num país em que um referendo é visto como uma avaliação dum partido e não como a expressão da vontade do povo, deve ser muito difícil. Os partidos (que acabam por decidir iniciar o processo ou não) acagaçam-se - é o termo.
Seja como for, foi ontem inaugurada oficialmente a campanha eleitoral mais inútil de que me lembro; alguém acredita, sinceramente, que exista uma só pessoa que poderá mudar o voto, neste referendo em particular, com base numa campanha? A questão do aborto é de opinião pessoal, não se muda dessa opinião como quem vota PS numas eleições e depois PSD.
São 2,3 milhões de euros, que poderiam ser muito bem aplicados em tanta coisa! Lá está, porque é que esse dinheiro não aparece quando se fala em instituições de apoio a mães com dificuldades de subsistência? Aí, nem os senhores do "Não" o arranjam. Voltamos à triste comédia: "Falam, falam, falam...".
No dia a seguir ao referendo, se perderem, vão-se consolar com o facto de terem feito tudo possível para evitar que a lei fosse alterada e assim lá terão o seu quinhão no céu.
Mas não é somente em relação aos senhores do "Não" que acho que isto é uma farsa. O "Sim" não é inocente. A começar pelos que elaboraram a pergunta (que, evidentemente, são pelo "Sim").
A pergunta, tal como está, é uma maneira muito hábil de não perguntar: "É a favor da possibilidade do aborto livre até às 10 semanas?". Porque, evidentemente, ninguém é a favor do aborto. Mas lá se deu a volta à questão, pegando na lei anterior e dando-lhe a volta da despenalização.
Claro que isto tem um senão: o que acontece com as mulheres que abortam às 11 semanas (e conheço pessoalmente quem o tenha feito)? Também se vai aplicar a lei nova (se vencer o "Sim"), do modo frouxo que se tem aplicado esta? É que, se é lei, é lei. Sobretudo se referenciada pelo povo. 10 semanas são 10 semanas, não se trata da tolerância de 10% no excesso de velocidade.
Outra questão que me irrita, neste circo do politicamente correcto, é a "Interrupção Voluntária da Gravidez". Não é uma interrupção. Interrupção pressupõe um reatamento:
interrupção (Lat. interruptione), s. f. suspensão; acto ou efeito de interromper; intermissão; reticência.
Dicionário Universal da Língua Portuguesa; Texto Editora; 2ª edição, 1997
É uma paragem, um término. Ponto final, período. É um aborto.
Obviamente, argumentar que liberalizar o aborto até às dez semanas é introduzir uma forma de contracepção é uma total e vergonhosa demagogia. Arrisco-me a dizer que a enorme maioria das mulheres que irão votar "Sim" no dia 11 nunca contemplariam fazer um aborto.
O argumento de certas plataformas, como o "Assim não", também é coxo. A bem da verdade, o movimento não se deveria chamar "Assim Não", mas "Não", sem hipocrisias. Um dos argumentos principais é que, às 10 semanas, há uma vida. Concordo. Na frase seguinte, é dito que a lei que existe está bem, e que não se deve mudá-la. Expliquem-me lá uma coisa: Se a lei é boa, se existe uma vida às 10 semanas, como é que os senhores aceitam uma lei que permite o aborto de seres vivos (inocentes - outro argumento, que aceito de bom grado), em certas circunstâncias? Que culpa tem o miúdo de a mãe ter sido violada? Ou de ter um cromossoma que decidiu dançar pelo seu próprio pé? Há vida de primeira e vida de segunda? Já agora, seguindo um raciocínio mais radical: qual é a diferença de abortar um feto malformado e a de enfiar um adulto com trissomia 21 num asilo (ou, quiça, "processá-lo", como era eufemisticamente dito)? Vida é vida. O que os senhores defendem, não é o "Não" no referndo, mas o "Não", pura e simplesmente. E, se assim NÃO for, estão a trair os próprios valores.
Esta questão, pelo menos para mim, não é permeável a argumentos; é-se a favor, ou não.
Eu, pelo menos, não conheço ninguém que tenha mudado de opinião, e não conheço ninguém que queira escutar as razões do campo contrário com alguma abertura de espírito.
É como o tipo que tem uma paixão assolapada por uma miúda que tem dentes tortos, uma perna mais curta do que a outra e é vesga: arranjem lá argumentos que o façam ver que ele poderá arranjar melhor! O aborto, para devidos efeitos, tem dentes tortos, uma perna mais curta do que a outra e é vesgo.
Aliás, todo este debate, só me faz ver uma coisa: que o que tem de ser mudado, são algumas pessoas deste país e, infelizmente, não são assim tão poucas. E em de ambos os lados da barricada.
Eu cá, vou lá pôr uma cruzinha no "Sim", e depois tiro os tampões dos ouvidos - infelizmente não consigo eliminar a ofensa visual até ao dia 11 (isso chamar-se-ia, creio eu, uma Interrupção Voluntária da "Visualidez"). A mota não deixa.