- Como assim, o Fim do Mundo?!
- É isso mesmo, amigo. Amanhã é o Fim do Mundo. PUF! Acaba tudo.
- Mas assim? Sem mais nem menos?
- Claro que não é sem mais nem menos. Isto é uma operação logística complicada. Repara que, quando vocês abatem um porco, também é preciso uma data de papelada: certificados de conformidade, autorização de operação de abate, garantia de eliminação de desperdícios, enfim, uma maçada.
Maki Hauitanen, finlandês cumpridor escrupuloso da regra de "só beber ao fim-de-semana, mas então que seja de modo a justificar a baixa da segunda-feira", ainda mal se tinha refeito do susto de ter desaparecido do seu bar favorito num Sábado à noite e de ter à sua frente não uma
girafa e um
shot de vodka, mas sim um manto negro intransponível, de onde trovoava uma voz ribombante. Na realidade, ele nem tinha desaparecido do bar: no seu lugar ao balcão tinha ficado um loiro de olhos azuis rasgados, com um ligeiro tique numa mão e uma carteira que continha um B.I. em nome de Maki Hauitanen e que permitia pagar tudo o que o fígado conseguisse processar. Ninguém no bar notou que o tique tinha passado, numa fracção de segundo, da mão direita para a esquerda. Uma benção para quem não é canhoto e tenta levar uma
girafa cheiinha à boca.
Entretanto, no negrume, outro Maki Hauitanen, o verdadeiro, percebia que faltavam uma série de perguntas, que, com o choque, nem lhe tinham passado pela cabeça. Coisa compreensível, se tivermos em consideração que estava, há apenas dois minutos e 12 segundos, a preparar-se para levar o shot aos lábios, e que, um milésimo de segundo depois, estava a ser confrontado com uma mão vazia, uma voz a dizer-lhe que Domingo seria o Fim do Mundo e a visão de... bem, nada.
- Mas onde é que eu estou? E quem és tu, já agora? E porquê eu?
- Não estás em lado nenhum. Ou melhor, AINDA não estás em lado nenhum. Claro que, quando voltares para o bar, terás estado nalgum lado, mas não terás capacidade para o explicar. Para já, conforma-te com a ideia de que não tem nem forma de sela de cavalo, nem de banda de Moebius. Vocês ainda não chegaram lá.
De resto, contenta-te com o facto de eu ser "Aquele-que-tu-não-pensas-que-eu-sou". Outro conceito que vocês nunca compreenderam. E tu, foste aqui chamado, porque não és ninguém. Eu me livre de explicar isto tudo a alguém que fosse alguém: ainda acreditavam nele quando voltasse e ficava tudo num alvoroço na véspera do trabalho.
- O teu nome é "Aquele-que-tu-não-pensas-que-eu-sou"?
- Não. "Aquele-que-TU-não-pensas-que-EU-sou".
- "Aquele-que-eu-não-penso-que-tu-és"?
- Isso.
- Posso abreviar para "Aquenapequete"?
- Desde que não abrevies para "Deus", por mim, tudo bem. Há uns milhares dos vossos anos, quando aqui chamei um faraó egípcio para lhe comunicar o Fim do Mundo (que eu já tinha percebido que a coisa era uma experiência falhada), ele abreviou-me para Aton e transformou o Egipto numa sociedade monoteísta. Virou-me aquilo tudo do avesso na véspera do serviço. Tive de adiar tudo até agora, que os gajos revoltaram-se e puseram aquilo tudo num rebulício. Às tantas, tive de mandar uma data de pragas para acabar com aquela raça, que não me deixavam pensar em paz. Por isso é que desta vez, te mandei vir a ti. Tu não és nada.
- Bem, calminha lá, que pelo menos eu sou algo que se veja. Em relação a ti, tu és uma voz.
- Não preciso que me vejam. Nem preciso de me justificar. Eu sou "Aquele".
- Mau. Agora é só "Aquele"? Assim não vamos a lado nenhum.
- Não interessa. Amanhã, por esta altura, serás ainda-menos-do-que-nada, portanto não interessam as conclusões a que chegaste.
- Ah, pois. Isso. Diz-me lá uma coisa: não se safa ninguém? Nem a Madre Teresa de Calcutá? Nem o Einstein?
- Esses já estão mortos.
- Sim, mas foram para algum lado, não? Ou reencarnaram, ou qualquer coisa assim.
- Não. Morreram. Foram-se. Passaram a não-existir.
- Não há nada depois da morte?
- Se quiseres, e para te reconfortar um pouco, eles continuam a viver nas gerações de larvas que os consumiram após a morte. Mas mais não.
- Não te parece um desperdício? Tanta gente boa que ser perde assim, sem mais nem menos?
- Nem por sombras. Einstein era um lunático perigoso, que quase me descobria a careca. Quando arranjei maneira de lá meter uns loucos para acabarem com ele, o gajo pira-se-me para os Estados Unidos, e eu fico a ter de tratar dos outros malucos a matarem meio mundo. Enfim, ninguém é perfeito. Apesar de "Alguém" dever ser.
A Madre Teresa de Calcutá era suposta ter ficado quietinha na Albânia e ter morrido aos 24 com desinteria, mas não. Foi-se armar em Madre Teresa de Calcutá. Deu-me cabo das projecções e estimativas para o quociente de mortes no norte da Índia. Uma trabalheira. Cada vinte anos, lá tinha eu de rever os números.
- E dos vivos? Não se safa ninguém? Tipo o Papa? Ou o Dalai Lama?
- Olha lá, pá: se tu quisesses que não se criassem ondas para poderes trabalhar em paz, ajudavas um gajo que, só por causa de um paízeco de nada me chateia o maior país do mundo? Não me parece. E o outro, sentado lá no seu trono de representante, de cada vez que abre a boca, põe-me metade do mundo a prostrar-se e a outra metade a protestar. Aliás, maldito o dia no qual eu me revelei a Abraão. A partir daí, só me criaram chatices, à procura de "Alguém". E maldito o dia no qual eu disse ao outro que eu era o Tudo e o Nada. Foram-me logo criar as religiões politeístas. Eu devia é ter ficado muito quietinho no meu lugar, volta e meia ter mandado uma catástrofe natural qualquer, uma doeançazita qualquer ou um político qualquer para ver o que acontece, e pronto. No dia em que abri a boca, estraguei a experiência.
- Olha lá, pá...
- "AQUELE"!
- Pronto, pronto. Olha lá, "Aquele", se bem estou a perceber, tu é que tens culpa disto tudo. Se tivesses ficado no teu lugar, a experiência, como tu a chamas, teria resultado.
- É uma possibilidade, mas se eu soubesse isso, não precisaria de fazer a experiência, porque saberia o resultado de antemão, não é?
- Então para que é que servia a experiência? Se tu és quem em não penso que és, não devias precisar de experiências; o resultado é sempre aquele que tu queres.
- Bem, como tu amanhã já não-és, vou-te confessar uma coisa, aqui entre nós: a experiência era para ver se "Ele" saía do seu esconderijo.
- "Ele"?! Existe mais do que "Aquele"?
- Claro que sim. Tem de existir. De onde é que eu venho? Quem sou eu? Alguém, ou melhor, "Aquele", claro, mas como?
- Tu não sabes de onde vens? Criaste o mundo para ver se "Ele" aparecia?
- Claro. Mas falhei. Ao me revelar a vocês, vocês tomaram-me por "Ele", e "Ele" já não teve necessidade de aparecer. Passaram por cima da minha cabeça, por assim dizer. Eu bem que mandava uma pragas e uma catástrofes, na esperança de que ele aparecesse para vos corrigir quando diziam que a culpa era "Dele", mas nada.
- Então vais retirar o anzol da água, para refazer o isco?
- É uma bonita imagem, sim senhor.
- E se criasses outro Mundo, e deixasses este como está? Tipo, em auto-gestão?
- Olha lá, pá, mas tu pensas que eu sou "Ele"? Eu consigo lá monitorizar dois Mundos! Um a seguir ao outro, vá lá que não vá. Além de que, vocês, com essa mania de descobrir coisas, ainda me encontravam o outro mundo, e lá estava o caldo entornado. Há uns três mil e tal dos vossos anos fiz isso, e pimba!: lá me apareceu a outra experiência a aterrar na América do Sul. Quando os espanhóis lá chegaram, foram tomados pela outra experiência, e foi o que se viu.
- Se a outra experiência era igual aos ocidentais, isso não fala muito a favor da tua imaginação...
- Isso não interessa. Lá tive de acabar com os outros, para vos deixarem em paz.
- Quer dizer, não há nada para além de nós? Extraterrestres?
- Nááááá... Já não. Já cheguei à conclusão que dois ao mesmo tempo era areia a mais para a minha carroça.
- Mas, olha lá: se existe "Ele" acima de ti, não havera um "Aqueloutro" acima "Dele"?
- Isso já é preocupação "Dele". Cada macaco no seu galho. Seja como for, e se isso te consola, esta foi a minha experiência favorita.
- Favorita? Mas em quantas é que isso já vai?
- Umas 754 562 639 687. E meia. Aquilo dos dinossauros nunca funcionou verdadeiramente bem. Mas vá lá, que se aproveitou o Mundo.
- E nunca te passou pela cabeça, que talvez "Ele" não exista?
- Impossível. Isso faria com que eu não pudesse existir.
- Epá, não é por nada, mas se na Terra me aparecesse uma voz a falar sem mais nada agarrado, eu partia do princípio que ela não existia.
- Acreditas nisso agora?
- Bem, neste momento, não... Mas não acredito que "Ele" exista.
- Achas mesmo que não?
- Claro. Tens alguma prova em contrário? Já fizeste milhões de experiências, e nem uma pontinha da sua barba. "Ele" não existe.
- Mas será mesmo? Será que esta experiência serviu para eu chegar a essa conclusão? "Ele" não existe?
...
- ORA BOLAS!!!! Mais uma experiência para o galheiro!! Rai'spartam!
Se se visse negrumes a encolherem de susto, esta teria sido uma das vezes. Maki Hauitanen deu um salto estratosférico (se existisse estratosfera no nada) e olhou à sua volta. Continuava a não haver nada. Somente outra voz, ainda mais trovejante.
- Pequeno ser insignificante, que me desmontaste mais esta experiência! Há quatro mil milhões de quadrilhões de anos que ando a fazer experiências para ver se "Aqueloutro" sai do seu esconderijo, e tu lixas-me tudo num quarto de hora!
- Então tu és "Ele"?!!!!! Vês, "Aquele"?! "Ele" afinal existe!!
- "Aquele" é que já não existe. No momento em que soube da minha existência, a dele deixou de fazer sentido. Eliminei-o. Vou ter de criar um novo.
- Então estamos safos? O Mundo não acaba amanhã?
- Não. O Mundo não acaba amanhã. A partir do momento que "Aquele" deixou de existir, a experiência dele deixou, também, de fazer sentido. O Mundo já acabou. Adeus.
- Ora foda-se.