Pablo Picasso (1881 - 1973)
"Tourada III - Picador"
manipulado digitalmente; para ver o original, clickar na imagem Já
toquei no assunto de raspão, mas como hoje é que é o dia da primeira tourada, desde há 7 anos, no Campo Pequeno, vou-me alongar um pouco mais.
Antes de mais nada, sei perfeitamente que isto é um exercício fútil; não vai alterar em nada a opinião das pessoas. Só o faço, porque acho que, em média, somos todos minimamente inteligente (sendo que daria pano para mangas o que cada um faz com essa inteligência), e que, em honestidade connosco próprios, às vezes temos de admitir que suportamos uma opinião com argumentos coxos. Não que isso nos faça mudar de opinião na maioria das vezes - infelizmente - e falo também por mim. Ou seja: gostem lá de tourada, mas parem com o nomear de argumentor parvos, por favor.
É evidente que se deve respeitar o costumes e tradições de um povo - em boa parte, são o que o distinguem dos outros. Mas acho que também se deve ter noção de que as tradições e os costumes podem caducar. Perde-se algo que é parte integrante de uma cultura? Talvez. Mas desde quando é que isso é necessariamente mau?
O argumento de que a tourada é um costume já antigo em Portugal, é, evidentemente, válido. Ninguém o disputa - existe desde o séc. XV, qualifica-se como antigo, evidentemente. Mas também era um costume antigo enterrar um galo na terra, deixando só a cabeça de fora, e depois ir a correr en direcção a ele e tentar decapitá-lo de um só golpe com um pau. Claro que a malta, como também manda a tradição, já vai bem etilizada para esta luta (feroz!) entre o homem e a besta, o que traz como consequência que a coisa só lá vá com várias tentativas.
Há muitas tradições a desaparecerem, e não vejo os senhores Ribeiros-Telles, Salvadores, etc. esforçarem-se minimamente para as defender. A Silvia (sem acento!), num comentário anterior, levantou mais um pouco a pedra sobre o assunto: enquanto houver pessoas dispostas a dar dinheiro, haverá sempre quem defenda uma tradição. As tradições morrem, pelos vistos, não por se tornarem obsoletas devido a uma mera questão de evolução social, mas por falta de dinheiro. Duas horas de picadaria em toiros, são €75 bem empregues. €300 por um tapete fiado à mão, que durará uma vida, bem tratado, são uma exorbitância, pelos vistos.
Alage Mamadu Dumbiá, da Associação de Muçulmanos Guineenses, disse uma vez o seguinte: "Não é crime. Não pode ser crime, porque é a nossa tradição!". Falava da mutilação genital feminina. E não vale vir com o contra-argumento de que aqui, estamos a falar de pessoas. Porque a equiparação da tradição de massacrar toiros com a de fazer tapetes de Arraiolos não é minha. Basicamente, o que é frequentemente dito pelos defensores das touradas, é que o facto de ser tradição é argumento suficiente. Pois então, assumam esse argumento em toda a sua plenitude. Doutro modo, não estão a ser consequentes. Lá vou eu voltar à adaptação da citação do George Orwell, no "Triunfo dos Porcos": Todas as tradições são iguais, mas algumas são mais iguais do que as outras?
É evidente, que a tourada move milhões, e que há muita gente a viver dela. Os ganadeiros, que criam os touros, p.ex. Se não criarem touros bravos, vão à falência. A isto chama-se "monocultura", e é sabido que é um dos maiores erros que se pode fazer. Fica-se dependente de um único produto. Quando, nos anos 30, o preço do café começou a descer brutalmente, devido a maior oferta do que procura, o Brasil, que era quase monopolista na produção dele (para além de praticamente viver às custas do café), começou a queimar café nas caldeiras dos comboios, para tentar subir o preço. Por acaso, devia ser bem agradável vê-los (cheirá-los) a passar!
A monocultura não só é má para o dono, como, evidentemente, para quem dele depende para trabalho. A solução para este problema, é diversificar, enquanto uma ainda dá dinheiro. Mas antecipação, por estes lados, só se conhece nos relatos da bola.
Em relação aos cavaleiros, nem falo - não dependem da lide em nada. São, na sua grande maioria, nascidos em berço de ouro, sendo que a discriminação em relação aos forcados e demais intervenientes na tourada é notória, até nos rituais durante todo o espectáculo.
É evidente que se deve respeitar os gostos das outras pessoas (tal como as tradições, já disse). Um dos argumentos é que as tourados são feitas em recintos fechados. Quem não gosta, não vai. Claro que a nossa sociedade se baseia na tolerância; mas a essa tolerância são impostos limites. Que, por vezes, até são um pouco estranhos: eu posso enfiar-me no Campo Pequeno e massacrar um touro, porque é tradição espetá-lo (e a lei o permite). Mas tentem lá enfiar-se no Campo Pequeno e organizar uma orgia desenfreada... No entanto, facilmente se poderá argumentar que também este acto de "o espetar" tem as suas tradições, porventura até anteriores ao séc. XV. E, no entato, não estão a incomodar ninugém que não queira lá ir. E, de certeza, que não incomodam nenhum bicho. Desde que estabeleçam bem as regras! Cuidadinho aí!!
Depois, há sempre aquele argumento de que o touro não sente nada, que só dói quando as bandarilhas são espetada nas costelas. A sério, nem me vou alongar sobre isto...
Outro argumento patético, é o da preservação da espécie do touro bravo. Vamos lá a ver os Grupo de Forcados Amadores de Vila Franca de Xira fazer uma pega de caras a um lince ibérico. Ou os chineses a bandarilhar um panda. Ou há moralidade, ou comem todos. Além de que, não estamos propriamente a falar dum animal "natural": o "touro bravo" foi praticamente criado para as touradas - um pouco como os cães de combate (outro dos bons costumes...). Houve, ao longo dos tempos, uma selecção genética da parte dos criadores, para criar animais mais "aptos" para a finalidade em questão. É, se assim quisermos dizer, uma perversão da natureza. Contra ela, até. Há uns tempos falei do
significado de ironia; aqui fica um exemplo: vamos lá massacrar um animal, para o salvar da extinção.
Há, ainda, aqueles que argumentam que a tourada à portuguesa até é boa para o animal, que o touro de morte até é proibido, por cá - a não ser que a cobardia política decida criar excepções. Francamente, a haver tourada, que matem o touro na arena. Mas não. Como somos caridoso, ao contrário dos bárbaros dos espanhóis, o touro é levado para o curro, onde lhe são arrancados os ferros e as badarilhas. Depois, há duas hipóteses: ou foi um animal nobre e digno na sua performance (coisa da qual ele muito se orgulha), e então é lhe deitado sal nas feridas (ele não sente nada, pá!), para voltar à arena noutra altura, ou então fica ali, como está, eventualmente durante dias (normalmente de quinta-feira até segunda), para depois ser levado ao matadouro. Muito mais humano do que os espanhóis.
Já agora: quem é que já caiu de bate-cú? E quem é que já partiu o cóccix? Na pega, é semelhante: muito frequentemente, o rabeador parte a cauda ao touro. O touro não fica parado porque tem sete caramelos em cima dele, a cheirar a bagaço. Embora isso de certeza contribua, claro. Eu, pelo menos, parava a uns vinte metros. Ele para, porque aquilo dói! Puxar um gajo agarrado à cauda que está partida, deve ser upa, upa!
Outro factor, passa pelo cavalos. Alguém acha, verdadeiramente, que a reacção de um cavalo a um monstro de 450 kilos a avançar sobre ele, é de fazer uma "piaffe", dois passos para o lado, e deixar o touro raspá-lo na nalga?! O caraças! A reacção de qualquer bicho, seria a de atirar com o palhaço de traje de luces para o galheiro e trepar pelas tribunas acima como se não houvesse amanhã, e que se lixe o vestido novo da Tita Conceição e Sá de Mello!
Um cavalo, até ser admitido à tourada é treinado brutalmente, na verdadeira acepção da palavra, como qualquer animal que é forçado a ter comportamentos contra-natura.
A sério: deixem-se de enfileirar argumentos bacocos. Assumam que é um hábito bárbaro, mas que gostam e que vão continuar a lá ir, enquanto não for proibido. Porque acharem que eu, pelo menos, irei concordar com algum desses argumentos é uma ofensa. Que, porventura, me irrita mais do que o facto de irem à tourada.
De resto, e como sei que a minha argumentação também não convence ninguém que não esteja predisposto a tal (e esse já não é convencido; poderá é concordar), também fico na minha: espero que, todos os dias de tourada, morra muita gente. A sério. Eu, pelo menos, assumo: sou um bárbaro.
Já agora, desculpem lá qualquer coisinha, que isto ficou outra vez grande como o camandro.