Chez Silva, anda tudo numa lufa-lufa. São 10 da manhã de Sábado, e hoje é o dia da festa de aniversário do José Leonardo: 15-anos-15.
O Sr. Silva vê aproximar-se, com grande expectativa, a altura em que finalmente transporá a soleira da porta de entrada uma criatura que seja mais digna das suas atenções visuais, que desde que a Sra. Etelvina entrou lá em casa, acabadinha de casar com ele, as coisas foram como que um pouco sempre a descer. Está bem que 15 é um pouco novo, mas "já dá pa perceber como é que amadurecem, caraças".
A Sra. Etelvina está há quatro dias enfiada na cozinha, a preparar comes e bebes para as criancinhas, sobretudo porque o marido deu cabo dos primeiros dois dias de trabalho, bastando para tal 17 minis e um jogo da selecção. Claro que ela protestou, mas tudo se resolveu quando o Sr. Silva, no meio dos queixumes, a chamou de "pombinha" e lhe fez uma demonstração razoavelmente apaixonada de como ela é o sal da sua vida.
Quando na manhã seguinte acordou e olhou para o lado, o Sr. Silva lá exclamou que tinha "de beber menos, cum caneco!", atirando com quinze minutos de retórica básica e suor pela janela fora.
Resignada, mas não conformada, lá se voltou a enfiar na única assoalhada que domina a seu bel-prazer e tratou de refazer os pastéis de bacalhau, croquetes, pastelinhos de nata miniatura, coxinhas de galinha, rabanadas e chamuças. Hoje é dia de preparar as sandes (fiambre, queijo, mistas e paté La Piara, tudo cortado em triângulos), e ainda falta preparar o SunQuick.
Ontem à noite, por alturas da transmissão do "jogo do Mourinho, que é mazé um génio do caneco, pá", a Sra. Etelvina vingou-se do marido, dando-lhe gressinos quando ele pediu "algo para trincar", dizendo-lhe, ao mesmo tempo, que "a vingança serve-se fria". "Atão ao menos que sejam uma merda duns croquetes, caralho!" - "Olha, Alberto, de croquetes, então dos pequeninos, estou eu farta e não fales assim à frente dos miúdos!". A dobradiça da porta da cozinha já estava para ser mudada há uns tempos, agora vai mesmo ter de ser.
O Zé Leo, figura central das casa Silva por estes dias, também está num estado de excitação de considerável magnitude, sobretudo porque lá conseguiu convidar a Andreia para a festa. Entre o grupo de biltres no qual ele se integrou, esta é considerada uma "
babe do caraças" - não muito elegante, até um pouco roliça, mas consideravelmente precoce e, segundo consta, "bastante activa". Claro que as hormonas tomaram conta da fantasia
teenageriana, fazendo com que ele tenha apostado a sua colecção de Ginas em como "era desta".
Lá teve, também, de convidar o "Necas", que é um chato de galochas, mas o detentor de uma aparelhagem e do respectivo kit de luzes - há uns tempos até conseguiu juntar-lhe uma bola de espelhos - não é grave, que o "Necas" gosta de ficar a um canto a pôr a música, portanto até nem chateia muito.
De resto, vêm o "Ronco", um gandulo de 17 anos com a inteligência de uma folha de alface (o que explica o facto de andar na mesma turma com miúdos de 14 anos) mas com um bíceps de estivador, o que o torna automaticamente convidado para todo o lado, o "Tocas", melhor amigo do Zé Leo, companheiro de confidências e gamanços de revistas no quiosque do Sr. Américo, o "Pipo" e a namorada, a Carla, que são convidados para todas as festas, porque às tantas aquilo é um regalo para a vista, o "Cenas", que já esteve preso uma vez (por uma noite, que o pai estava inconsciente algures na Mouraria, e que jura que se "fartou de apanhar porrada da bofia", história que, com o passar dos tempos, foi ganhando em riqueza) e o "Vesgo", detentor de óculos com dioptrias de dois dígitos, mas tolerado pelos outros porque é quem deixa copiar nos testes.
Das raparigas, destaca-se as já mencionadas Andreia e Carla, mas vêm também a Paulinha, eterna apaixonada pelo Zé Leonardo, que ele lá teve de deixar vir, depois de muito ela ter pedido, a Marizé, que onde vai a Andreia, vai ela, a "Rucas", uma "miúda fixe" e a maria-rapaz da rua, que não tem medo de entrar numa briga ou de carrinho numa defesa mais física, as duas gémeas Mónica e Filipa, que a Sra. Etelvina insistiu e que são filhas da vizinha do nº 34, a Nita, que o "Tocas" pediu para vir, a ver se é desta que arranja coragem de a convidar para algum lado ("Talvez até lhe saque um beijo, pá!") e a Joaninha, que não deve nada à beleza, mas consta que é a tábua de salvação caso se tenha azar com todas as outras.
O Zé Leonardo está bestialmente contente com a sua escolha, especialmente por ter convidado mais duas raparigas do que rapazes, porque "pode ser que uma ou duas não queiram", o que, olhando para a selecção de espécimens do sexo masculino, é de um optimismo gritante.
Chegada a hora do lanche, com o "Tocas" já presente desde o almoço e o "Necas" há umas duas horas para montar tudo na garagem das traseiras, os convivas lá vão chegando, sendo prontamente levados para o espaço pela Dona Etelvina. O Sr. Silva colocou a televisão ao lado da porta da sala, de modo a não perder pitada do que ali vai entrando e, por alturas da Andreia, não consegue deixar de escapar um ligeiro desabafo de espanto, prontamente disfarçado com "'tava-se memo a ver qu'ias perder a bola, meu granda nabo!", seguido de um arroto, que dez minis estavam a necessitar de aragem.
A Sra. Felismina, por causa dos bicos-de-papagaio, é incumbida de se sentar numa cadeira na garagem, "para evitar chatices", nas sábias palavras da sua filha, enquanto que o Zé Francisco, o benjamim da família, é mandado para o desterro do seu quarto.
Na garagem, entretanto, o Zé Leonardo já recolheu os 5 CDs dos D'ZRT (um por rapariga (as gémeas dividiram), menos da "Rucas", que lhe ofereceu umas caneleiras e da Paulinha, que lhe ofereceu um livrinho "Amor é..."), um porta-chaves feito dum prego de 17 cms do "Ronco" ("Grunf, fui eu que dobrei, pá! Grunf!"), Um CD "Summer Ballads" do "Pipo" e da Carla, umas algemas com segredo do "Cenas", que ele jura ter "gamado a um bófia, enquanto me partiam a boca", uma enciclopédia da Verbo do "Vesgo" e um "Mini-guia das aves de Portugal" do "Necas".
O "Tocas" já o tinha presenteado, no segredo do quarto, com uma selecção criteriosa de revistas que o Sr. Américo não tinha tido debaixo do olho - o "Tocas" faz os 100 metros em 13,2 segundos.
Após algum tempo passado a mordiscar nos acepipes amontoados na mesa, a festa lá toma o seu rumo, sobretudo devido ao facto de o Zé Leonardo ter conseguido sacar à socapa uma garrafa de gin e uma de vodka da sala para a garagem (já para não falar na grade de Sagres que o "Ronco" parqueou no interior da garagem, embrulhada em papel de prenda - um esquema que, no caso do "Ronco", se poderá comparar à descoberta da pedra filosofal, caso se tratasse de uma pessoa de inteligência mediana). A Sra. Etelvina ainda ficou um pouco, mas, depois de uns olhares embaraçados do filho, decidiu desaparecer, confiando na atenção da sua mãe, que, no entanto, durou pouco: ao fim de 20 minutos a cabeça caia sobre o colo, e assim ficou.
Já um pouco tocados, os convivas optam por incentivar o "Necas" a pôr música ao que ele responde com uma selecção trazida lá de casa, rejeitada à quarta canção. As raparigas obrigam-no a passar os D'ZRT, sendo que o Zé Leonardo impõe que seja o CD da Andreia, "que é muito melhor". Três vezes "Para mim tanto faz" depois, dançado efusivamente pelas meninas ao som dos comentários dos rapazes (que ficaram ao lado, claro, o que serviu para cada um "tirar as medidas"), o "Necas" faz uma tentativa com Britney Spears, da qual é rapidamente dissuadido pelo "Ronco" com um torniquete de braço, apesar de saudado pelas raparigas. O problema, é que agora eles já estão mais descontraidos (graças aos senhores Larios, Smirnoff e Centralcer), e querem "dançar a sério". É tomada a decisão de aproveitarem o CD oferecido pelo "Pipo" e pela Carla, que arranca com o "Against all Odds" e assim vai em crescendo, até ao tema do "Titanic". Doze temas, que dão para definir (do primeiro ao sexto) o par: o "Pipo" com a Carla, claro, o que só durou em pé até ao "I will always love you", altura pela qual se enfiaram nas molas do velho sofá, para regalo dos outros imberbes, que iam lançando olhares por cima dos ombros das parceiras. O "Tocas", por ocasião do "Don't dream, it's over",
lá arranjou coragem e convidou a Nita, e ela não se fez rogada, que já estava à espera há uma data de tempo. A "Rucas" cedeu aos encantos do "Cenas", sobretudo depois dele lhe ter demonstrado como é que aplicou "uma cabeçada ao bófia gordo, acho que era o sargento, e uma joelhada ao capitão", antes de se pôr "a andar dali para fora". O "Vesgo", na qualidade de marrão e "enfiadinho" do grupo, espantou todos, ao não só conseguir dançar com as duas gémeas alternadamente durante doze canções, como sair da festa com elas, uma de cada lado. Foi a grande revelação do dia, e mesmo muitos anos depois, e vitimada por algum embelezamento factual, ainda será recordada na Picheleira a festa na qual ele ia alternadamente com uma das duas para trás do sofá, e, no fim, até com as duas.
A Marizé, depois de abandonada pela Andreia, dedicou-se a tentar inicialmente dançar com o "Tocas", mas, depois deste ter abraçado a sua desejada, foi ter com o "Necas", à falta de outro, que passou a tarde a mostrar-lhe a colecção de CDs e como se põe as luzes a piscar mais ou menos. Diria mais tarde, que "foi como ir ao dentista durante quatro horas". O "Necas", no entanto, não a largou durantre três meses, que nunca aquilo lhe tinha acontecido - uma miúda ir ter com ele e lá ficar tanto tempo, só podia ser paixão.
A Andreia foi a protagonista do caso do dia, após ter iniciado o primeiro slow com o José Leonardo. No fim da canção, não conseguiu resistir ao encanto das flexões dos braços do "Ronco" (que ele executava à beira da "pista de dança"), e aí se anichou para o resto do dia. Isto fez com que o aniversariante a rotulasse mentalmente (bem como na confidência do "Tocas") de "ganda puta", sendo, seguidamente, resgatado pela Paulinha. No fim do dia, acabariam por jurar eterno amor, o que, de facto, viria a acontecer - duraria seis meses.
De fora ficou a Joaninha, de fama imerecida e que se arrepedia sempre de ir a festas, porque ficava sempre ao lado, a ver.