Umas duas semanas após ter conhecido a "sua Etelvina", o Sr. Silva chegou à conclusão que o seu futuro cunhado era um atrasado mental. Isto não fala muito a favor do próprio Sr. Silva, porque demorou duas semanas a perceber que o irmão da sua mais-que-tudo tinha mesmo um atraso; o nascimento tinha demorado tempo a mais, o que tinha tido como consequência uma insuficiência de oxigénio para o cérebro, e nem o incentivo do seu pai para respirar sempre em grandes lufadas alterou o estado daí decorrente.
A consequência disso, é que o Sr. Silva, sempre que é preciso visitar o cunhado se desculpa com "eu não fiz o exame da quarta para que o teu irmão me pegue o bicho. Ainda saio de lá maluquinho!"
Seja como for, este Domingo lá se repetiu uma nova ida ao Sanatório "Mente Sã em Colete de Forças", desta vez para festejar o aniversário do Zé Manuel, irmão mais velho. Como todos os anos, a ocasião é precedida de uma semana de intensas preparações: para além do bolo favorito do irmão, a Sra. Silva leva a sua mãe às compras: para a prenda (este ano uma moldura falante com a fotografia das duas; à quinta vez, a Sra. Etelvina lá consegue deixar um "Lembra-te que a mãe te ama muito, sempre", sem irromper em convulsões, que a culpa do parto ainda a persegue) e para comprar uma roupinha para estrear, para as duas. Ainda houve umas vezes que o Sr. Silva argumentava que "o maluquinho nem dava por isso", mas, às tantas, a Sra. Silva impôs-se com alguma persuasão decibélica, e, hoje em dia, o Sr. Silva já só protesta em surdina. Assim foi, outra vez, este ano: houve algum murmurinho da parte dele, quando incentivado a desembolsar 150 Euros sob um olhar que se poderá considerar portador de uma mensagem do género "lembra-te daquela vez", mas mais não.
Aliás, o Sr. Silva aprendeu a aproveitar o melhor destas idas, sobretudo desde o aparecimento da TV Cabo: a ida ao "anormal" é precedida da compra de duas grades de minis, o pagamento das mensalidades em atraso da SportTV (e dos "outros canais", mas desses só ele sabe...), a Sra. Etelvina é obrigada a lavar o fato de treino (Mike Davis, 100% Terilene) e os putos comem os restos do conteúdo do frigorífico durante uma semana, para criar espaço para as minis.
Chegado o dia, o Sr. Silva já melhorou o seu humor (apesar de ainda grunhir sobre a compra da roupa: "137 órios para embrulhar a velha em preto!"), tendo em conta que se prevê uma tarde em cheio - dá o "Olivais e Moscavide vs. Picheleirense Orgulho FC" na "télévisão" e as minis estão fresquinhas, o que foi satisfatoriamente comprovado ao pequeno-almoço, recorrendo a amostras pontuais.
A família ainda é acompanhada à soleira da porta, onde se efectuam as despedidas: a mulher leva um beijo e um conselho amigável - "Vê lá, não me apanhes nada e apareças por aqui a babar, que depois ainda tens de fazer o jantar!" - a sogra é avisada, de dedo em riste, que "até que podia lá ficar, a fazer companhia ao maluquinho...", enquanto o Zé Leonardo é avisado que "depois, é direitinho para casa, meu ganda malandro: nada de ir ter com a namorada, nem essas porcarias!" e ao Zé Francisco é tirado o Action Man com a bazuca, com as palavras "Deixa lá a merda da boneca, raio do puto, que um dia ainda te apanho de mão dada a outro gajo" seguido de um calduço e um pontapé.
Com cinco horas de liberdade adquirida, o Sr. Silva dirige-se para a sua poltrona, devidamente aproximada da televisão, que se o médio ofensivo não marca, é preciso poder dar-se um murro nela.
Após convenientemente refastelado na poltrona, o Sr. Silva prepara-se para se deixar ser invadido por o quer que seja que algum obscuro manipulador de botões num estúdio tenha decidido: dois minutos e trinta e quatro para ajustar as partes baixas em combinação perfeita, três minutos para se levantar e ir à cozinha trazer a primeira grade de minis, outros dois para voltar a justar o "material", um minuto para ir buscar o tira-cápsulas, minuto-e-meio para voltar a ajustar tudo e dez segundo para abrir a primeira e a segunda mini.
"Cento-e-trinta ório!! Parece impossível!!! Anda um gajo a trabalhar para estoirarem as massas assim!! Ainda o ano passado, tive de targar 75 órios nuns sapatos prá Etelvina. Assim, não chega prás minis, caraças!"
Duas horas, três golos do Olivais e Moscavide, e uma grade de minis depois, o Sr. Silva está ainda inconformado com os gastos da esposa, e agora mais inflamado, que as cervejas e a derrota do Picheleirense Orgulho FC deixaram mossa. Mossas subsistem, também, na televisão, que depois do apito final do imparcial decidiu também ela fazer "piiiiiuuuuuuuuuu", e desfaleceu: "Olha-me esda merdda, gue nom me áuguenta nem gom um soquito! Mach e agora, vaço o quê? Hã? Izdo vai cusdar uma piba de massa, ó se vai! Cento-e-drinta órios!!! Barece imbossível!!!".
Pesada e vagarosamente, o Sr. Alberto Silva levanta-se da sua poltrona, coça-se em vários locais e dá um pontapé na grade da minis, em direcção à cozinha, que já não lhe parece estar numa linha recta do seu lugar, mas, mesmo assim, chega lá. Vinte e dois minutos depois, encontra-se o Sr. Silva de novo na sala, de gatas, que foi a única maneira de arrastar a segunda grade de minis fresquinhas até lá.
"Héééé láááá! Izdo é mais pesado! Devvve ser a grade de blástico esbecial. Ora vamozzz lá alizd... agili... aligir... pôr izdo mais levejinho..." - pop, pch, glubglubglub.
"Chendo e tal órios! E agora a delevijão, hããã? E não fach diferenza nenhuma! Compram aguelas coisas todas, e ficam iguaich! Ora vamch lá!"
Enfia duas minis no sovaco, pega noutras três entre os dedos da mão direita, e dirige-se para o quarto de casal, onde larga as garrafas, que agora tem de ir, com a urgência que o estado lhe permite, à casa de banho. Graças a Deus, o bidé não fica muito longe da sanita, o que diminui consideravelmente o estrago infligido ao chão. De volta ao quarto ("Psh. Lavar az mãos? Puquê? Izdo tá limpinho, hã? Eu sei onde medo izdo, ó carazas..."), o Sr. Silva abre o guarda roupa, de onde o contemplam dez anos de batas (de padrões vários), o vestido de casamento (que ainda conseguiu ser aproveitado para o baptizado do mais velho, depois de devidamente alterado), um vestido preto com lantejoulas verdes (para ocasiões especiais), um casaco e saia preta e azul (chumaços extra nos ombros, que foi comprado algures para o fim dos anos 80) e a saia de padrão escocês com casaco preto, que fora, precisamente, a roupa comprada há exactamente um ano, por alturas da "visita ao anormal".
Após um tempinho dedicado a reequilibrar-se e a despejar uma mini, o Sr. Silva arranca estes últimos do armário, olhando longamente para eles "Berfeidamende bom. Não pchebo porgu'é que foram combrar vechtidoch novoch. Cendo e drinta e muitoch órios!!! Pchchchch...". Atira com a roupa para cima da cama, e tira o vestido preto e verde do armário. "Pffff... E ainda tem echte aqui! 'Tá bom!! A ver..."
Despeja mais uma mini, e procede a retirar as suas roupas, o que, apesar da simplicidade de descascar um fato de treino ser enorme, é tarefa para algum tempo, sobretudo se se tenta despejar uma mini pela goela, simultaneamente.
Já em slips e camisa interior de alças, o Sr. Silva procede ao teste final (de quê, já ele não se lembra, mas agora é uma questão de descobrir quem tem razão, independentemente de também já não se saber sobre o quê): com alguma dificuldade, enfia os dois pés pelo topo do vestido e puxa-o por si acima. Após colocadas as mangas, observa-se ao espelho: "Berfeitamente bom!! Cherve a mim, cherve a ela. Cento e drinta órios belo cano abaixo!!! Falando nicho, denho que ir dar uma mija...", e dirige-se, de novo, à casa de banho. Acontece, no entanto, que vestidos pretos com lantejoulas verdes para "ocasiões especiais", não são feitos para permitirem grande mobilidade a homens razoavelmente ébrios, e as minis espalhadas no chão não ajudam. Ao terceiro passo, o Sr. Silva coloca o pé em cima de uma delas, o que o propele numa pirueta dupla seguida de um Axel triplo, dignos de qualquer ginasta russo. Na aterragem, bate no canto da cama com a cabeça, o que tem o condão de o pôr inconsciente.
Uma hora, trinta e dois minutos e vinte e cinco segundos depois, acorda, com uma dor de cabeça terrível. À porta do quarto está o resto da família Silva, boquiaberta, sendo que a Sra. Felismina, dilecta sogra, se prepara, por sua vez, para ficar inconsciente.
O fato preto e verde está inutilizado, devido à amplitude de abertura de pernas a que foi sujeitado, o sangue que escorreu abundamtemente do lenho na cabeça do Sr. Silva e pelo facto de este não ter podido ir à casa de banho.
O José Leonardo colapsa num riso histérico, enquanto que o Zé Francisco fica a olhar para o espectáculo, a tentar perceber a diferença entre o pai de vestido preto e verde-brilhante e o seu Action Man de farda verde-azeitona e bazuca às costas.
A Sra. Silva ainda não se conseguiu reapanhar da visão, e só sobe e desce o queixo.
O Sr. Silva, ciente que a situação é periclitante, e já substancialmente mais sóbrio devido ao choque, lá põe o cérebro a trabalhar, para ver se se safa desta "Fomos assaltados!!! Deram-me uma marretada na cabeça e entraram por aí adentro!!! Tu, puto, pára de te rir es, ou levas uma arrochada que nem amanhã te endireitaste!! Gamaram-me as minis quase todas! Puseram-me neste vestido para eu não me poder mexer!! Juro! É verdade!!"
"Mas, ó Alberto, assaltaram-te para te roubar as minis? E entraram por onde? Está tudo fechado!"
"Voltaram a fechar tudo depois de saírem! Juro! Puto, ou te calas, ou levas um chuto que nem com um pé de cabra te tiram da parede! Olha, olha!! A televisão está partida! Devem ter sido eles!! Não a roubaram porque deve ter avariado naquele momento!!"
"Mas beberam as minis aqui?! Porque é que não as levaram?!"
"Provas!! É isso! Provas! Assim ninguém os vai encontrar com o produto do roubo!! É isso!! Gatunos, malandros! Puto, 'tás aqui, tás no Rossio!!!"
A Sra. Felismina, entratanto, já se recompôs, e o seu olhar promete retaliações, caso o seu genro não mude de atitude perante ela, pelo menos até ao dia da sua morte. Dele ou dela, a que acontecer primeiro, que a esperança é sempre a última. O Zé Francisco, após o tempo de reflexão, decide que o pai lhe vai ter de oferecer outro Action Man, dê por onde der. O Zé Leonardo rola para trás, em direcção ao seu quarto, que o pai começa notoriamente a ficar incomodado com o riso histérico dele.
A Sra. Silva leva o esposo para a casa de banho, onde é confrontada com uma situação muito pouco higiénica, comentada com "Os malandros! Vês Etelvina, nem o óculo da sanita levantaram, nem baixaram a tampa! Porcos! Gatunos! Aaaaiii!".
Após feito o curativo ao Sr. Silva, que pelo meio ainda lhe promete que para a semana a leva de automóvel ao Colombo, para comprar um vestido novo, e que não vale a pena contar nada disto a ninguém, que senão os gatunos ainda voltavam para se vingarem, e que lhe apetecia era mesmo uma mini, a Sra. Silva põe-se a deitar fora as minis vazias espalhadas pela casa e o seu vestido favorito. Depois, com o marido já instalado na poltrona, a segui-la com o olhos para todo o lado, miserável, mas não incapacitado ao ponto de não poder segurar uma mini, vai limpar os estragos no quarto e na casa de banho. Pelo meio, ainda manda um raspanete ao filho mais velho, que se diverte a pôr a cabeça de fora do quarto e a explodir num riso incontrolável quando a vira para o pai.
Já de noite, por alturas de se deitarem, ela vira-se para o marido: "Olha lá, eles achavam que te conseguiam imobilizar com o meu fato? É que estava em cima da cama..."
"Mulher, eu sei lá o que é que eles queriam! Nem tive tempo para pensar nisso!"
"O que é que queres dizer com isso, Alberto?"
"Quer dizer, eeehh... não sei o que eles queriam, nem parei para descobrir, percebes?"
"Hmmmmm... Seja como for, para o ano, vens conosco ver o meu irmão. Deixar-te aqui sozinho é perigoso demais, podem-te assaltar outra vez, e eu já não tenho vestidos. Já agora, Alberto, sabes uma coisa? Não queres pôr aquela minha bata às riscas cor-de-rosa e brancas e verde claras? É que, não sei porquê, aquilo de te ver com o vestido, deixou-me assim como que de modos, sabes..?"
"Mas, mas... Oh. Que se lixe..."
Do quarto do Zé Leonardo ainda se ouvia risos.